“Não faz isso, vai estragar a tua vida, cara. Ela não ia querer isso.” Não importava mais. Tinha perdido tudo num dia só, com a morte dela sendo o golpe final que faltava para deixar o que tanto segurava vir a tona. Mal prestava atenção nas pessoas me olhando de forma estranha quando descia da moto, largando o capacete no chão de qualquer jeito. Queria que eles vissem bem o meu rosto, olhar bem fundo nos olhos enquanto a vida desses merdas se esvaísse lentamente nas minhas mãos. Rezava para qualquer demônio ou espírito sedento por sangue me dar toda força que tinha para nada sair errado até o momento que o último estivesse morto. Daí poderiam fazer o que quisessem comigo.
“Isso é meu, me dá!” O protesto do oriental embriagado não me comovia nem um pouco quando tirei das mãos dele o martelinho de cachaça e tomei tudo num gole só. O dono do bar parecia intimidado com a minha figura simplesmente pegando a dose que o cliente recém havia pagado (e que com certeza não era a primeira nem quinta nesse fim de tarde) e depois saindo como se nada tivesse acontecido, visto que o único que reagiu (em vão) foi esse chinês cachaceiro. “Tava ótimo.” Quase quebrei o copo quando pus de volta na mesa de plástico na calçada. A garganta só começou a arder quando virei a esquina e parei de ouvir os resmungos do idoso que mal conseguia caminhar.
“Devolve meu ciga--” Um bom trago pedia um cigarro para acompanhar. Por sorte um loiro de estilo alternativo estava fumando um na esquina, que não me dei ao trabalho de pedir e tirei das mãos dele antes que pusesse na boca. Ele olhou bem nos meus olhos, e cada um era de uma cor diferente, além do rosto extremamente familiar… ficamos durante alguns segundos nos encarando, até que quebro o breve silêncio.
“Vai doer o pescoço.” Deveria ser no mínimo dez centímetros mais alto que ele, e parecia um pouco intimidado e surpreso por ter o cigarro tomado por alguém mais alto e forte, além de algo mais que não me interessava perguntar o que era. Só que certamente estava vendo algo muito errado em mim, quase como se alguma criatura tivesse atendido as minhas preces, escorado no meu ombro soprando alguma ordem ao pé do meu ouvido. Algo tão ruim que também chegou aos ouvidos dele e o fez se afastar logo, deixando o cigarro para lá. Cigarro esse que me punha um pouco de calma e faria centrar melhor. A cada tragada olhava para o céu avermelhado do por do sol. As folhas da árvore da outra esquina assumiam um tom amarelo escuro conforme eram banhadas pelos últimos raios de sol, antes da lua cheia ser a única coisa a brilhar por trás das nuvens no céu. Era uma paisagem que trazia lembranças boas e distantes, muitas delas envolvendo a minha irmã. Especialmente as nuvens que lembravam os cabelos ruivos dela. Éramos irmãos apenas por parte de pai, por isso parecia tão diferente de mim e a maioria só se dava conta disso quando algum de nós contava, até porque nossa relação era mais de melhores amigos do que irmãos. Lembro de tudo que ela me ensinou sobre arte, filosofia, literatura e História quando não passava de um adolescente rebelde beirando a delinquência. Não fosse a iniciativa de me mostrar o quão importante são o conhecimento e a disciplina, jamais terminaria a escola e nunca teria feito artes marciais, em especial o kenjutsu, coisas que moldaram o meu caráter. E no final a vida foi ceifada pela turma de um boçal que era justamente o oposto dela e do que me ensinou. Com certeza farei muito pior com cada um deles. A hora era agora, não posso desperdiçar o sangue que está começando a ferver. Não tenho tempo nem de pisar em cima do cigarro que deixo cair da boca. A cada passo sinto mais e mais ser tomado por alguma força que nunca senti antes, e a própria situação era mais do que favorável a mim: encontrei poucas pessoas na rua, nenhuma delas me fez gastar energia desnecessária, e se não fosse justamente pelo causador de tudo isso atravessando a rua e encontrando o grupo dele, a rua estaria praticamente deserta.
Somente desacelerei quando vi um anão que vomitava palavrões jogar revoltado na calçada um vergalhão de aço que imediatamente vi como um sinal: aquele seria o meu instrumento de vingança. Poderia muito bem dar um jeito neles desarmado, porém um sinal divino (ou demoníaco?) desses não passaria despercebido. Juntei com a mão esquerda o ferro quase do meu tamanho só diminuindo um pouco o ritmo do meu passo, mas sem parar de caminhar até o destino final que estava bem perto. A partir de agora eram só casebres de madeira com cercas de tábuas juntadas do lixo, e o terreno onde os sete se encontravam não destoava muito disso. Parei um pouco para vê-los interagirem entre si. Dois sentados no degrau da porta da casa, e os outros em volta em pé, falando alguma coisa que não prestei atenção e rindo entre si. Só de imaginar eles rindo daquela maneira enquanto espancavam a minha irmã até a morte dava vontade de vomitar de nojo. Não me notaram, e iria usar isso ao meu favor, até porque um claramente ostentava uma arma na cintura. Para o azar dele, estava de costas para mim. Agora era a hora. Cada fibra dos meus músculos, cada gota do meu sangue, cada osso do meu corpo clamava por isso. Meus mestres certamente reprovariam o que vou fazer, mesmo os mestres dos mestres deles tendo treinado e desenvolvido essas técnicas justamente para fazer isso. Tenho certeza que o que aprimorou a técnica de segurar a espada com as duas mãos que estou usando agora o fez para ter mais força a fim de prevalecer o próprio conceito de justiça. O mesmo também vale para o golpe vertical de cima pra baixo que uso tanto para arrebentar o cadeado do portão quanto para assustá-los. A cerca de tábuas de madeira que se mantinha em pé e coesa apenas por alguns arames não aguenta a pancada e acaba cedendo. Não sei se estavam chapados ou a droga já havia destruído boa parte do cérebro, pois demoraram mais tempo para reagir do que imaginei. Passava por cima da cerca de madeira indo em direção ao que estava armado que primeiro se virou em direção a mim para só aí por a mão para trás e tentar puxar a arma da cintura. Antes que sequer pudesse colocar um dos dedos engraxados no revólver desferi uma estocada em direção aos dentes, me aproveitando do comprimento do vergalhão de aço. A segunda resistência que senti e que me fez parar a estocada provavelmente foi quando depois de ter perdido os dentes da frente a ponta bateu na garganta. Para aumentar mais ainda o estrago, alavanquei para baixo, destruindo mais dentes e deslocando a mandíbula, o fazendo gritar e sangrar feito um porco. Chegou a esquecer de sacar a arma, ainda mais quando puxei de volta a minha “espada”, roçando a borda não lixada da ponta pela céu da boca e passando essa imperfeição acidentalmente afiada pela gengiva com os dentes recém extraídos. Ele berrava e se debatia de desespero e dor assim que caía no chão, sequer conseguindo fechar a boca arrebentada que vertia sangue por toda a camiseta e calção de marcas famosas (e falsificadas). Os outros olhavam aterrorizados para aquela cena dantesca. Quatro deles saíram correndo para dentro de casa, um deles pegou o corredor do lado e foi para os fundos do terreno, e a minha próxima presa ficou em estado de choque olhando para o comparsa agonizando de dor, e depois olhou para o meu rosto que não escondia a satisfação por aquela carnificina que recém havia começado. A expressão de pavor se tornava de dor quando quebrei o joelho esquerdo, e logo em seguida o direito. No chão se tornava uma presa mais fácil ainda, estourando o ombro direito.
“Com um braço quem sabe consiga pegar a arma do teu amigo que já desmaiou pelo tanto de sangue que saiu.” É claro que não ia conseguir. Ainda mais com a estocada que dei no estômago que o fez vomitar tudo que tinha dentro junto com muito sangue. O outro braço também não ia fazer muita coisa. Quando entrei na casa, o pisoteei por ter ficado no meu caminho. Não iam muito longe, visto que a casa toda tinha janelas teladas e gradeadas, e o único barulho que ouvi foi do covarde nos fundos gritando porque muito provavelmente tropeçou. Se esconderam dentro da casa feito ratos, e ia ser muito fácil achá-los num lugar tão pequeno. O primeiro estava num armário na sala, e o chão de tábuas arrebentou pisoteando a cabeça dele até ver os olhos pararem de piscar e uma cachoeira de sangue descer pelo nariz, pintando meus coturnos de vermelho. Fui até a cozinha, e vi que a porta dos fundos ainda estava trancada pelo lado de dentro. Realmente acharam que iam conseguir se esconder de mim… o escondido no banheiro atravessei o crânio com uma estocada que entrava pelo olho e quando saiu quebrou a janela, espalhando cacos de vidro e pedaços do cérebro por cima da tampa do vaso sanitário. Outros dois tentaram se esconder embaixo da cama, o que foi pior ainda: os fiz sair de lá derramando álcool por cima do colchão, embaixo dele e depois riscando um fósforo que apaguei com um sopro na hora que começaram a sair feito baratas de baixo. Quebrei a coluna do primeiro assim que tirou metade do corpo, o segundo dei a falsa esperança de que conseguiria sair porta a fora para no fim ter o mesmo destino do anterior. Ambos acertei o pescoço e assisti a convulsão até pararem de se mexer. O último… seria o prato principal depois de tantos aperitivos. Estava nos fundos do terreno, agonizando com o tornozelo varado por um toco pontiagudo de alguma árvore recém cortada. Quase não ouvia o choro de dor dele com o cachorro preso por uma corrente amarrada num toco parecido latindo e rosnando. Deitado de bruços no chão, com a cara cheia de lama e escorrendo lágrimas… virei ele para cima com um chute, para olhá-lo melhor nos olhos.
“Se não abrir os olhos, vai ser pior.” Não abriu. Acertei um golpe na bochecha dele que fez os molares voarem uns bons centímetros boca a fora, finalmente abrindo os olhos e me encarando. Parecia confuso, não entendia o que se passava, faltando dentes para perguntar qualquer coisa.
“Não teve coragem pra matar com as próprias mãos… precisou da ajuda dos amiguinhos.” Os soluços de choro voltavam, tentava dizer qualquer coisa que era impossível entender com a boca naquele estado. Tinha uma última coisa a fazer… o que acabei de soltar e saciar hoje tinha um último pedido antes de me deixar em paz e permitir que pudesse pensar em qualquer outra coisa. O chutei novamente, para deixá-lo de bruços dessa vez. Abaixei o calção dele para poder enxergar melhor, afinal, já era noite, só alguns postes e a luz da lua cheia iluminavam fracamente o local da execução. Podia entender que dessa vez gritava “não”, repetidas vezes, afinal, ele tinha ideia do que viria a seguir. Numa única estocada depois de alguns segundos mirando o empalei, subindo pelo reto e depois forçando intestino acima. Nunca ouvi alguém berrar de dor tão alto na minha vida, e suspeito que tenha parado não por perder muito sangue e danos internos, mas sim pelas cordas vocais estourando com o esforço que fez. Era um barulho nojento de se ouvir, as entranhas sendo perfuradas pelo vergalhão de aço, saindo sujo de fezes, sangue e vômito pela boca. Levantava o corpo empalado no pedaço de metal, e na frente do terreno, segurava com uma mão o cadáver empalado no ferro, igual uma bandeira que dali em diante iria tremular ao vento. Quando tudo acabou, a sensação veio. Nasceu no peito, preenchendo os pulmões por completo. Subiu pela garganta, rasgando. Tentei conter dentro da boca, mas no final, tudo que restava era liberá-la…
“HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!”
Só parei ao ouvir sete estampidos seguidos da sensação de sete cigarros sendo apagados em sete locais diferentes no meu braço esquerdo. Olhei para trás e era o mesmo que deixei viver em seus últimos momentos coberto de vômito e sangue com uma .22 na mão. Sequer teve tempo de sacar a arma antes, enquanto quebrava os ossos dos joelhos e ombro direito. Não parecia nem mais consciente pelo olhar perdido e olhos semicerrados, o braço esquerdo tremendo apenas de segurar uma arma tão leve e de calibre tão baixo. Foi um breve susto, mas no final das contas, fiz. Nem mesmo quem vinha ao fundo com a sirene ligada iria desfazer.